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The Last of Us Part II: A Deificação Problemática de Ícones Falhos


É muito difícil entender lados - principalmente quando os lados são contra seus princípios ou pessoas que ama - e é esse o principal tema de The Last of Us Part II: mostrar visões de mundo diferentes em conflito. Usando suas emoções e apego por personagens queridos contra você, o objetivo é te fazer ter sentimentos conflitantes e dúvidas morais.

É assim que The Last of Us Part II quebra suas pré-concepções de heróis e vilões e expõe o problema de deificar personagens. O maior desafio dessa obra é te fazer pensar sobre seus sentimentos e as ações dos personagens e o maior desafio cabido a você consumindo essa obra é livrar-se de pré-julgamentos e entender como as ações podem ter consequências. Entender que, mesmo não gostando, não significa que tais ações são ruins ou sem motivações válidas.


Essa é uma obra fácil de se amar ou odiar pelos motivos errados, que tem uma mensagem que pode explicar a revolta cercando o jogo desde o lançamento - a idealização de personagens - e como isso, em TLoU Part II em específico, é tão danoso.

O ponto de maior debate é o caminho não convencional que a história escolhe, mas essa era a única sequência possível para um game como The Last of Us. Ações têm consequências e no final do primeiro jogo há uma ação que abala tudo. A sequência é sobre o que esse abalo causou a todos e a decisão mais controversa desse game é também a única decisão possível para a trama avançar. Apesar do jogo girar em torno de Joel, sua morte era a única saída para isso acontecer sem desvirtuar o arco do personagem.


The Last of Us é o jogo do Joel. Apesar dele também girar em torno da Ellie, ele é o protagonista. No fim, o estado do personagem assim como o jogo se espelham nos acontecimentos do início, formando um arco completo, e esse Joel que está no segundo game é um personagem em paz, feliz e sem remorso de suas escolhas. É um personagem completo, que já teve sua conclusão, enquanto Ellie não teve o fechamento do seu arco, não teve decisões e nem paz. Por esses motivos, a saída era usar Joel para fazer um jogo sobre a Ellie, fazê-la crescer e ter uma conclusão. É assim que The Last of Us Part II pode ser entendido como o game da Ellie, apesar da história girar em torno do Joel.

Quando resolveram fazer esse jogo sobre a Ellie, a jornada da personagem foi estabelecida, mas como fazer nós nos importarmos com isso? E novamente, a morte do Joel era a única saída para tal. Eu vejo histórias como um exercício de conexão: sem se conectar às motivações dos personagens, a história perde força, principalmente se o efeito que ela quer causar é algo extremamente emocional. Essa decisão não só motiva a Ellie como nos motiva a acompanhar a história. Naquele momento estamos na pele da Ellie, a pessoa que ela era mais apegada se foi, e o personagem a que nos apegamos se foi, dessa maneira conseguiram transformar a motivação da personagem na motivação do jogador até isso ser completamente subvertido no meio da história.


Vários temas são apresentados durante Part II: ciclos de amor e ódio, consequências e perspectivas diferentes, mas o que vejo como seu maior tema é a perda, como as pessoas lidam com isso e como a perda as motiva. Vou citar quatro exemplos de perdas que ocorrem na história - de Joel, Ellie, Abby e Dina - e como cada personagem lida com suas respectivas perdas.

Quando Joel perdeu sua filha, Sarah, no começo do primeiro jogo, sua vida acabou. Por 20 anos ele não vivia mais, apenas sobrevivia. Ele não tinha mais motivos para viver, não havia mais significado e muito menos projeções para o futuro. Quando finalmente encontrou algo no qual se agarrar - Ellie, uma garota que no início era uma estranha, mas com o tempo foi se aproximando a ponto de Joel a considerar como uma filha - e isso foi ameaçado, Joel tirou a cura do mundo em uma decisão completamente irracional, porém compreensível. Toda a construção da jornada fez com que essa ação, a princípio desumana, se tornasse uma das ações mais humanas já mostradas em um jogo. Humanos são falhos e muitas vezes egoístas. Joel teve sua vingança contra mundo que tirou sua filha, porém é mais que isso… foi pelo apego, e não suportar perder a única coisa que importava em sua vida novamente foi a única vingança baseada em amor, amor por uma filha, uma vingança subconsciente, mas essa decisão por amor iniciou um ciclo de ódio irracional, e diferente de Joel, Ellie e Abby têm ódio como motor para sua vingança.


A vingança da Abby entra no tema de perspectivas e lados diferentes que o game aborda, o que muitos interpretam equivocadamente, acreditando que há lado certo ou errado, heróis e vilões, e é onde entra a deificação dos personagens. O apego que você adquire pelo Joel no primeiro game te cega para o resto das pessoas daquele mundo e esconde que ele não é e nunca nem foi um herói ou sequer uma boa pessoa. Elevam personagens a níveis religiosos, ídolos imaculados, onde eles não têm liberdade de evoluir, mudar, cometer erros e muito menos sofrer consequências por seus atos, e quando a história trás a realidade cruel desse mundo, gera um ódio em quem não consegue se desapegar desses falsos ídolos.

A mensagem de Part II é como esse ciclo de ódio é destrutivo e é irônico que a decisão que causou esse ciclo na história iniciou também um ciclo de ódio no mundo real contra o game e as pessoas envolvidas em sua concepção. Tudo isso reforça ainda mais a mensagem e como as pessoas se cegam para outras perspectivas.


Joel é apenas um humano falho em um mundo caótico. Não há certo ou errado, mas ele matou muita gente em sua jornada e uma dessas mortes deu início a um ciclo: a busca pela vingança da Abby. Joel matou o pai de Abby para salvar a Ellie, um ato de amor que só gerou ódio e quando aquele golpe desce na cabeça de um personagem querido só vem o nosso ódio. Naquele momento somos colocados no lugar da Ellie, e por metade do jogo eles alimentam isso, mas quando finalmente chegamos ao clímax, ele é interrompido e vemos todo o lado da Abby, suas motivações, relações, fraquezas e medos. Esse também é o momento decisivo do jogo, ele te desafia a jogar fora seus julgamentos e se colocar no lugar de outra pessoa, mas o quão eficaz é com cada um depende, e nesse momento podem até cair em outra interpretação errada.


Abby não é uma heroína e tampouco uma vilã. Ela e o Joel são iguais, assassinos. Te mostrar todo o lado da Abby não foi pra fazer você perdoar seus atos. Part II não a pinta como uma heroína, apenas mostra o seu lado da história. A busca de Abby era totalmente egoísta, ela queria vingança a todo custo não importando os danos. Ela torturou e matou brutalmente alguém que salvou sua vida, mesmo com motivos e sabendo seu lado, não torna o ato menos errado, e esse ódio alimenta o ciclo que faz a Ellie seguir esse mesmo caminho.

Mas a virada da Abby é que ela não fica satisfeita após se vingar. Na verdade ela sente um vazio e não vê mais propósito na vida. Ela perdeu a pessoa que amava, Owen, por essa obsessão. E agora que acabou, ela se sente sozinha e sem rumo. Nesse momento o simbolismo narrativo mais forte do game se mostra evidente: o espelho. A primeira cena do jogo é um espelho da última e é uma imagem simbolizando decisões e a relação da Ellie e Joel.


O Espelhamento mais significativo na história é o da Abby seguindo o caminho que Joel trilha no primeiro game. Essa sensação da Abby, de não ter propósito para continuar e ter perdido quem amava, é a mesma que Joel teve em sua jornada e, assim como ele, que recuperou sua humanidade ao conhecer alguém, Abby encontra isso no Lev e na Yara. Abby começa a se apegar e se importar. Proteger essas crianças é seu novo objetivo e vai fazer tudo que for preciso para deixá-las a salvo. O paralelo é claro entre Joel e Ellie e mesmo sem ter ideia, Abby é muito mais parecida com Joel do que imaginou.

Quando finalmente as duas narrativas se cruzam, a Abby novamente se vê com ódio e em busca de vingança, e nós a entendemos. Ellie e Tommy mataram seus amigos, mas olhando para o Lev, que trouxe sua humanidade de volta, ela vê que esse ciclo de ódio não tem fim e que ela já tem o que precisa para seguir em frente. Ela deixa Ellie e Dina viverem após perceber isso, que não há justiça em nenhuma das suas ações e que aquilo só vai a destruir mais. Porém Ellie ainda não entende isso, ela não consegue perdoar, ela ainda não consegue superar a perda de Joel.

Já Dina é a única que realmente supera suas perdas. Ela perde Jesse, pai do seu filho, e consegue seguir em frente, algo que Joel, Ellie e Abby não conseguiram, e no fim perde até mesmo a Ellie e ainda assim continua seguindo em frente.


Eu vejo a Ellie como a personagem mais complexa nessa história. É quem menos deixa explícitas suas emoções. Ela é totalmente fechada sobre o que sente e isso se agrava mais no decorrer da história. Ela, assim como todos nesse mundo, perdeu muito, mas com Joel, ela encontrou um motivo para sua vida e se apegou a Joel como uma figura paterna. Durante toda a jornada do primeiro game, ela estava pronta para se sacrificar pela cura, esse era seu objetivo, sua vida valeria a pena.

Durante sua jornada pelos EUA com Joel, Ellie contemplava pela primeira e última vez o mundo que iria deixar, mesmo que isso seja no seu subconsciente, a cena contemplativa das girafas é onde mostra realmente que ela faria o que for para ter propósito, a sua imunidade tinha que ser algo especial que faria tudo que ela viveu ter significado, mas Joel tira isso dela e mente sobre tudo que aconteceu no fim do primeiro game. Nesse momento, Ellie fica abalada, tudo aquilo foi por nada e ela não era especial, não cumpriu seu propósito.

Apesar de no fundo suspeitar que o Joel não contou a verdade, Ellie vive três anos com ele, mas o apego entre os dois não é mais o mesmo e por desconfiança Ellie se afasta, não conseguindo seguir em frente. Após pressionar Joel, ela finalmente descobre a verdade e seu mundo desaba, ela o culpa e se distancia totalmente dele.

Tudo isso é contado por flashbacks durante Part II. Quando Ellie parte em busca de vingança, não sabemos que ela sabe da verdade e quando isso é revelado, acaba sendo surpreendente que Ellie tenha feito tudo isso mesmo sabendo o que Joel cometeu. Ellie o amava muito e perder Joel é muito traumatizante. Ela não consegue superar ainda, ela não consegue seguir em frente sem terminar o que começou. O jogo mostra que ela ainda quer vingança, mesmo vivendo uma vida com Dina e JJ, Ellie não consegue ter paz.


Na noite anterior à morte do Joel, Ellie o trata mal quando ele só tentava a ajudar. Nesse momento, o jogo te leva a pensar que ela se sente culpada por tê-lo tratado mal em sua última conversa, então ela parte pela última vez atrás da Abby, não se importando de perder sua nova família ou de perder sua humanidade.

Quando ela finalmente encontra a Abby não é como ela esperava. Abby estava prestes a morrer, totalmente sem forças. Ellie presencia a vontade da Abby de salvar o Lev acima de tudo e nesse momento novamente pensa no Joel, como ele faria de tudo para protegê-la.

Ellie força Abby a enfrentá-la e quando está prestes a matá-la, novamente se lembra do Joel e deixa Abby viver. Antes ela estava totalmente cega pela vingança e só quando finalmente chegou ao fim percebeu que em todo esse momento ela não estava buscando vingança para seguir em frente e sim buscando aceitar a perda e finalmente perdoar Joel.

A discussão não foi a última vez que Ellie e Joel se viram. Na última conversa deles, Ellie concordou em tentar perdoar Joel, mesmo ele dizendo que faria tudo de novo. Mais do que a morte do Joel, o que mais machuca a Ellie foi não tê-lo perdoado em vida. Essa chance foi tirada dela com a morte de Joel. Vendo a dedicação da Abby em proteger o Lev, Ellie vê o Joel naquelas ações, que faria tudo para protegê-la e ela finalmente o entende.


Deixando a Abby viver, Ellie estava quebrando o ciclo que o Joel começou, finalmente aceitando sua morte, e consegue perdoá-lo, apesar de ser tarde demais.


Ellie perdeu tudo. Perdeu Dina, perdeu sua vida na fazenda e até mesmo o que a conectava com Joel - a música - por ter perdido dois dedos e se tornado incapaz de tocar violão. Assim como a história do game é cheia de espelhos narrativos, é mostrado o quanto ela se odeia no momento que ela não consegue mais se olhar no espelho dentro da casa, mas apesar de tudo ela finalmente teve a paz que tanto buscava e consegue seguir em frente superando a morte do Joel. Deixando o violão, Ellie finalmente faz isso, enquanto a câmera se aproxima lentamente e a mostra seguindo em frente.

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