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God of War - Um Retorno ao Novo, uma Transformação à origem

Atualizado: 16 de fev. de 2023


"Zeus! Your Son Has Returned! I Bring The Destruction Of Olympus!"

Em 2005, na faculdade, um amigo me disse durante a aula: "Não vejo a hora de chegar em casa! Hoje eu vou pro inferno, nunca achei que ia ficar tão feliz dizendo isso!!!" Rimos, porque ele falava de um jogo que estava fazendo bastante barulho pra quem curte videogames. Numa era pré redes sociais, o boca a boca, revistas e alguns poucos blogs relataram, impressionados com a qualidade técnica e gráfica, o que seria um dos destaques daquele ano: God of War.

Não era pra menos. O jogo era um desbunde. Visualmente apelativo na grandeza dos cenários e crueldade das batalhas. Épico, com uma trilha sonora orquestral forte e acentuada e trabalhos de atuação e dublagem absurdos, God of War era um marco na indústria. O jogo trouxe uma nova forma de se imaginar o que até então era o gênero em alta na geração, o Hack n' Slash. A sanguinolência e visceralidade do seu protagonista fizeram fama. Ao invés de esconder ou demonizar sua violência, o jogo se orgulhava dela. E sua história, bem, era uma tragédia grega sem que alguém desse alguma importância. Afinal, entre uma linha de diálogo aqui e uma cutscene ali, havia sempre uma montanha de corpos dos incautos que cruzavam o caminho do Fantasma de Esparta.

Essa fórmula rendeu. Saindo do PlayStation 2 com dois jogos aclamados, 2 jogos para o PSP que, para época, impressionavam por quase emular a qualidade do console de mesa numa tela de quatro polegadas, e finalmente chegando ao PlayStation 3 em dois jogos que eram visualmente maravilhosos, mas que já demonstravam desde aquela época um cansaço da fórmula que outrora foi um grande sucesso.

Videogame é uma mídia riquíssima e com a possibilidade de contar grandes histórias apenas possíveis com o espectador no controle da ação. Observando-se esse aspecto, surgiram ao final da geração PlayStation 3/Xbox 360 obras como Telltale's The Walking Dead, Spec Ops: The Line e, o considerado por muitos o ápice da narrativa em games, The Last of Us.

Nesse momento estreia no PlayStation 3 o último game da epopéia grega de Kratos, "God of War Ascension". Porém, apesar do alto valor de produção e tentativas tímidas de dar alguma profundidade ao monstro assassino que estrelava a franquia, o jogo enterra uma era de sangue, vísceras e muita gritaria por vingança. O público se sentia saturado da experiência grandiosa e ao mesmo tempo rasa, enquanto era visível que a jogabilidade atingiu seu ápice e apontava para um declínio sem novidades ou melhorias significativas que empolgassem o jogador.

“I Am What The Gods Have Made Me!”

Para quem não assistiu o documentário Raising Kratos, o mesmo está de graça no YouTube e, se você se interessa por videogames num geral, recomendo muito a experiência.

Esse documentário retrata a mudança de rumos do estúdio Santa Mônica para o que se tornou uma das franquias mais famosas dos videogames. A reinvenção de God of War é um marco, pois pega uma história bidimensional e a transforma num conto com nuances, usando um personagem sem apego emocional com o público para contar uma épico inesperado sobre seu tema mais presente: a família.

Família é um tema central em God of War. Veja bem: Kratos se tornou o arauto de Ares para salvar seu exército de uma iminente derrota para os bárbaros. Como arauto do deus da guerra, Kratos é manipulado para matar sua própria família, uma vez que Ares queria que o espartano não tivesse amarras terrenas no cumprimento do seu dever. Após imolar sua esposa e filha e ser condenado a viver coberto das cinzas de seus corpos (por isso a alcunha de "Fantasma de Esparta"), Kratos ainda descobre que seu irmão foi raptado e preso no Hades; sua mãe, presa em Atlântida por seu pai, até então desconhecido. E ao descobrir sua mãe e o paradeiro de seu irmão, sua mãe se torna uma besta horrenda por revelar a identidade do pai de Kratos: Zeus.

No Olimpo, família também é um tabu. Ao buscar sua vingança com apoio da deusa Atena, Kratos se torna um peão no tabuleiro de Zeus, que precisava se livrar de um grande estorvo na administração divina: o seu próprio filho Ares, o então deus da guerra. Ao cumprir sua tarefa, Kratos ascende ao Olimpo, herdando a posição de seu outrora senhor. Ao descobrir a verdade sobre sua família, Kratos se torna um fardo para o seu pai que, tomado pelo medo da traição, abre uma frente de guerra mais uma vez contra outro de seus filhos. Mas o que Zeus não considerou foi que a determinação e esperança de um homem que nada mais tinha a perder derrubaria o próprio Olimpo. Sim, esperança, a praga final da caixa de Pandora que garantiu a divindade de Kratos foi a arma principal na guerra contra os deuses.

Essa trama toda tem suas nuances, seus personagens e seu desenvolvimento. Mas sempre foi deixada de lado para que a ação fosse o foco dos holofotes. E nesse contexto, com um desfecho crítico e quase que insuperável, o desafio de retomar a relevância do deus da guerra chega num momento em que, mais que uma jogabilidade afiada e gráficos impressionantes, o público busca por um algo a mais, um diferencial. No caso de God of War, a tarefa que parecia impossível se fez necessária: uma boa história precisa ser contada.

"Do not be sorry. Be better."

O resgate da humanidade de um deus sem mais nenhuma adoração se deu na simplicidade do cumprimento do dever mais antigo do mundo: ser pai.

Depois de uma das maiores transformações de uma franquia já estabelecida, a nova história de Kratos não abandona seu passado. Pelo contrário, toda a tragédia sofrida e causada pelo Fantasma de Esparta são o fardo que ele carrega agora, numa nova realidade, tendo que cumprir o que ele falhou em fazer em toda sua vida. Cumprir o dever que seu próprio pai se negou. Kratos, agora num mundo novo, com uma nova esposa, casa e dentro de uma realidade até então desconhecida, se vê em conflito com a sua própria natureza para redescobrir o que é viver. Sim, viver. Não guerrear, não matar ou vingar. Sem obstinação, o que sobra ao deus da guerra é o fardo de sua própria humanidade. Agora, sua luta é outra: criar seu filho num mundo desconhecido. Mais do que isso, sua segunda chance sofre o revés de ter a pessoa que o introduziu a essa nova realidade acometida de uma fatalidade. Aquele que outrora era o arauto da morte, se vê sem saber lidar com o luto. Mesmo após trucidar todo um povo e seus deuses, o fantasma de Esparta não sabe chorar pela perda da sua esposa.

E nesse ínterim, um filho precisa ser criado para não repetir os erros do pai.

A beleza da história contada e seu impacto se devem ao contexto de todo um passado violento e estigmático. Mas mais do que isso, esse novo capítulo na vida de um assassino confesso e condenado pelo mundo é marcado como um recomeço e uma retomada do centro mais essencial às suas decisões: como alguém que teve sua humanidade negada por tantas vezes pode ter sucesso em criar uma família?

A missão deixada por Faye, a mulher que se dignou a amar o homem que havia entre o deus da guerra e o Fantasma de Esparta, era simples em essência: que suas cinzas fossem jogadas do pico mais alto dos nove reinos. Essa missão não tinha só o objetivo prático de honrar sua memória. Faye apontou a Kratos um caminho que deveria ser trilhado junto ao seu filho, Atreus. Um caminho que não era claro, para que os dois o desvendassem juntos. Um caminho difícil, para que juntos o superassem. Um caminho imprevisível, para que o monstro aprendesse a ser pai, e para que o filho aprendesse a ser um deus. Sim, no final de God of War, é mostrado como Faye estava ciente dos fatos que acometeram a jornada de Kratos e Atreus. E como ela viu nisso a oportunidade de dar ao amor de sua vida a oportunidade de resgatar sua própria humanidade. De tornar um deus mais humano, e um monstro capaz de amar.

"The Cycle Ends Here."

A jornada de Kratos e Atreus não é e nunca teve a intenção de ser perfeita. Um homem que não sabe o que é ser pai com uma criança que mal o conhece num caminho cercado de monstros e morte tende a ter seus percalços. Os sentimentos extremados pelo luto levam a dupla a conflitos necessários. "Não confunda meu silêncio com falta de luto" é uma frase dura de um pai para seu filho e que leva a conclusão "Mas como você saberia, se você não me conhece?" Intimidade e confiança não se compra, se cria. E é preciso fortalecer e investir esse laço para que não se perca. Kratos desconhece esse conceito tão humano e tão trivial. Mais do que isso, o medo de levar seu filho a repetir seus próprios erros criam uma barreira onde Kratos crê que é melhor que seu filho não tenha um pai do que tê-lo como pai. O que Kratos não sabe é que sua amada viu o que nós, enquanto jogadores, começamos a ver também ao longo dessa jornada: que o arrependimento leva ao aprendizado, e o tempo transforma até o maior dos monstros no mais capaz dos guardiões.

Kratos tem em sua natureza a guerra. E como demonstrado ao longo deste novo capítulo, ao deus da guerra é confiada a missão de evitá-la. Na busca pela sobrevivência, a verdadeira vitória vem do conflito resolvido sem sangue. Ao mesmo tempo, a força para superar um ambiente hostil vem do controle. A força vem do coração, mas é regulada pela cabeça, e só assim é possível fazer o bem. Essa lição, dentre outras, passa a experiência de Kratos para seu filho. Uma experiência forjada em fogo e sangue. Uma experiência marcada pelo luto de um deus que se viu em desgraça por uma vingança que não trouxe paz.

Experimentar essa história, com toda a beleza e grandiosidade que lhe foi concedida pelo estúdio Santa Monica é uma dádiva. Se você ainda não pode trilhar a jornada até a Montanha com Kratos e Atreus, recomendo fortemente que o faça. De coração aberto, para uma das histórias mais cativantes e surpreendentes já contadas num videogame. E, após cumprir sua missão e honrar a vida de Faye no pico mais alto dos nove reinos, que venha o Ragnarök.


Texto carinhosamente escrito pelo Tio Fê (@VemAquiTioFe)


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